quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Um quilombo na Chapada

O quilombo resiste

No sertão da Bahia, uma comunidade remanescente de quilombos, há séculos na região, luta para sobreviver em meio ao descaso do governo. Resta muito pouco de sua cultura original, pagada ao longo do tempo por causa do preconceito dos brancos.
Por Leonardo Sakamoto
Vista do Povoado da Barra
Além dos contrafortes ao sul da Chapada Diamantina, em meio a uma terra desbotada pelo açoite os anos, um povo luta para sobreviver ao rolo compressor da modernidade. A centenária comunidade remanescente de quilombo de Barra e Bananal - a cerca de 15 quilômetros de pó e buracos da histórica Rio de Contas - tenta se adaptar ao mundo contemporâneo e ao mesmo tempo resgatar parte de seu passado perdido.
Quem chega a esses vilarejos pensando em encontrar casas de palha cobertas com telhados de folha de palmeira - no melhor estilo tribal angolano - se decepciona logo de cara. Antenas parabólicas brotam do alto de casinhas coloridas, esparsas, difíceis, pipocando aqui e ali, mais como testemunhas do que como réus. Tanto em Barra quanto em Bananal, as igrejas são o centro da vida social como em qualquer outra cidade do interior. Construções não são muitas. Dá para contar nos dedos das mãos (calejadas com o trabalho nas roças) e dos pés (cansados de caminhar nas estradas poeirentas). As cruzes no único cemitério competem com as ervas daninhas e o mato para ver quem fica com a atenção do visitante. O rio Brumado, de águas cristalinas, corta os vilarejos indo morrer na barragem mais à frente.
Povoado do Bananal
O lugar é bonito. À esquerda o Pico das Almas, que guarda lendas douradas de um tempo em que se jogava pó de ouro em cima dos santos nos dias de procissão. Por todos os lados e sob os pés, a Chapada Diamantina. Como língua local, o já batido e tão falado português. Dialetos africanos se perderam no tempo, varridos da memória até dos mais velhos. No século XVII, um navio negreiro vindo da África naufragou na costa baiana próximo de onde é hoje a cidade de Itacaré. Os sobreviventes nadaram até a praia e, tendo o curso do Rio das Contas como guia, adentraram sertão acima em busca de um lugar seguro para se estabelecerem. Escolheram as cabeceiras do Rio Brumado e por lá ficaram, cultivando suas roças, mantendo sua culturas, suas tradições. Porém, a descoberta de ouro na Chapada Diamantina trouxe aventureiros ávidos pelo metal dourado.
Bandeirantes chefiados por Raposo Tavares escravizaram os quilombolas, colocando-os para remexer cascalho. Não foram erguidas senzalas e os negros continuaram vivendo em suas terras enquanto foi erguida a vila de Mato Grosso para os brancos. Com a exploração, o ouro foi escasseando e as atenções se voltaram para o norte da Chapada, região de Lençóis, onde haviam sido descobertas jazidas de diamantes. Com isso a liberdade foi reconquistada, mas o preconceito e a discriminação continuou.
Centro do povoado da Barra
O cotidiano não varia muito. Barra do Brumado está a aproximadamente dois quilômetros de Bananal e é o centro da comunidade. Em volta de ambos os vilarejos, as roças se espalham feito um tapete esburacado pelos morros ao redor. Nessa época do ano, pouca chuva, muito pó que, de tempos em tempos, encontra-se com o vento e realiza pequenos redemoinhos na praça central de Barra. De um lado a igreja, do outro o posto de saúde e a escola. Os alunos da 1ª à 4ª série do ensino fundamental ficam por lá mesmo. Depois, só em Rio de Contas. Um ônibus escolar branco faz todo o dia o trajeto entre a cidade e os vilarejos levantando poeira em uma estrada carroçável, mas nem tanto.
A energia elétrica chegou há quatro anos e a água encanada em 1988 depois de muita briga por parte da comunidade. Os políticos locais do passado, seguindo a inércia racista, fizeram de tudo para que ambas não fossem instaladas nos arraiais. A luz poderia ter vindo muito tempo antes. Porém, foi desviada para que os "negros" não fossem beneficiados.
O posto de saúde existe na comunidade desde 1986 e possui agentes de saúde. Um trabalho conjunto com a Pastoral da Criança acabou com a desnutrição no lugar e diminuiu as complicações pós-parto. Antes, morria-se muito do "mal do sétimo dia" (infecção que começa no umbigo do recém-nascido). Passava-se óleo e outras misturas para acelerar a queda do umbigo. Hoje, as doenças cardíacas são as que mais matam nos arraiais e não raros são os casos de pressão alta.
De acordo com a Fundação Palmares, as comunidades, juntas, possuem por volta de 740 habitantes. Desse valor, desconta-se as migrações sazonais, o pessoal que vai para São Paulo, depois volta para o Nordeste, desce de novo para o sul e retorna ao norte num vai e vêm sem fim. Provavelmente, metade disso é de residentes fixos.
Os sobrenomes são poucos. Silva, Jesus, Sousa, Ramos, Santos. Basicamente essas são as famílias. Muitos casamentos endogâmicos, isto é, entre parentes, primo com prima, tio com sobrinha. Os sobrenomes vão se cruzando, se misturando. "Mas, na verdade, todo mundo é primo", como atesta Claudina Silva, 80 anos, uma das moradoras mais antigas da comunidade. O que é óbvio se considerarmos que o casamento com pessoas de fora da comunidade é uma novidade das últimas décadas. Por isso, antigamente era muito comum bebês nascerem com defeitos físicos ou mentais.
Claudina Silva na sua horta de mandioca
Encontramos Claudina na sua roça de mandioca, remexendo a terra, arrancando ervas daninhas, sob um sol forte. Pele curtida pelo tempo e dona de um gostoso sotaque arrastado, lembra da época em que a pobreza era mais brava e que o rio Brumado, nos meses de chuva, ilhava certas partes da comunidade. "Tínhamos que arremessar comida para as pessoas que ficavam presas do outro lado pois não haviam pontes." E o tempo também foi bom para sua voz, curtida, como em um velho barril de carvalho. Cadê, meu bem?, ah!
Pra me carinhar, ah!
Saudade dele, ah!
Quer me matar, ah!
Se eu disser que bala mata, ah!
Bala não mata ninguém, ah!
A bala que mata gente, ah!
É amar e querer bem, ah!

Claudina (á direita) e sua irmã Maria na fachada de sua casa
Entre uma cantiga e outra, chegamos à casa onde ela e sua irmã Maria, de 79 anos, vivem juntas. Nunca se casaram. "Eu até tinha achado um rapaz bonito, mas o pai não deixou", lembra Claudina remexendo o passado num misto de aceitação e saudade. A televisão para elas, treco de fazer doido. Esquecida na estante, ganhando poeira, tem menos importância que a janela, que dá de frente para a praça e para o movimento do arraial.
"Nossos pais contavam histórias de sofrimento, da época da escravidão. Mas não queríamos ouvir as coisas dos mais velhos porque achávamos que era caduquice. Aí eles morreram e a gente, que não soube aproveitar, perdemos isso para sempre." Nas palavras de Claudina, o testamento de um povo. O racismo que sofreram fez com que, ao longo dos anos, os negros das comunidades substituíssem sua cultura, tradições, crenças pelas dos portugueses. No imaginário das pessoas, as coisas que vinham dos brancos eram melhores que a dos negros. Candomblé e dialetos tribais estavam ligados à escravidão e por isso foram sendo abandonados. Enquanto isso, catolicismo e língua portuguesa adotados incondicionalmente.
Inventario do século XVIII relacionando a posse de escravos negros
A maior quebra nesse processo deu-se entre a geração dela e a anterior, ou seja, provavelmente na primeira metade desse século. A escravidão ainda se achava recente, coisa que muitos queriam esquecer. O pensamento era o mesmo que levou Rui Barbosa a queimar ingenuamente centenas de documentos relacionados à prática escravocrata no Brasil. O objetivo: "apagar" uma parte detestável da história. Ignora-se, com isso, o verdadeiro papel da História que é justamente se fazer lembrar de certos acontecimentos para que eles nunca mais se repitam. Sobraram algumas coisas apenas. O bendengó, uma dança que se faz aos pares e que fica boa com dez participantes ou mais, parecida com o samba. Ainda é ensinado na escola do vilarejo de Barra. A utilização de alguns instrumentos, como o tambor, o pandeiro e o triângulo - esses dois últimos já frutos de uma mistura de tradições. Além de rezas, "excelências" (para encomendar as almas mortas para o outro mundo) e as cantigas de roda.
"Os velhos estão acabando e, se não tomarmos cuidado, com eles vão embora muitas das tradições que nos restam", alerta Carmo Joaquim da Silva, presidente da Associação de Desenvolvimento Comunitário Rural de Barra do Brumado, Bananal e Riacho das Pedras. Carmo é o líder local e tenta trazer de volta para o quilombo a cultura dos negros que se perdeu. Para isso, tem recebido apoio de grupos de consciência negra de Salvador. Em Barra e Bananal comemora-se o dia 20 de novembro (Dia da Consciência Negra) aniversário da morte de Zumbi e não o 13 de maio que, segundo eles, foi um "acordo de reis e da Europa para vender seus produtos".
Os tijolos de adobo são ultilizados coo principal material de construção das casas ha séculos
"Nosso povo ainda não tem consciência da sua raça". Carmo Joaquim conta que as coisas começaram a mudar de uns dez anos para cá. "Antes a gente mesmo se inferiorizava, achávamos que não tínhamos acesso a certas coisas porque éramos negros e concordávamos com isso. A palavra "negro" era uma ofensa. Preferíamos preto, moreno." Há mais ou menos dez anos resolveram colocar o tambor, o pandeiro e o triângulo nos cultos da igreja. "Aí o padre disse que finalmente estávamos usando o que é nosso."
"Nos últimos 300 anos, nossa cultura se perdeu, foi tomada. Não houve resistência. Queremos que o pessoal que trabalha conosco em Salvador nos explique o que perdemos", completa Carmo Joaquim.
Durante séculos, as comunidades de Barra e Bananal passaram por um lento, mas contínuo, processo de apagamento de sua cultura. Ora por influência do racismo externo e o bombardeamento de valores ocidentais, ora por uma autocensura que se tornou maior após a abolição da escravidão.
Centro da cidade de Rio das Contas que teve seu apogeu com o ouro
Porém, durante esse último quarto de século a região sofreu sua maior transformação. Parte das terras dos povoados foram desapropriadas para a construção do açude Público Luiz Vieira, que serve principalmente aos municípios de Livramento, Dom Basílio e Rio de Contas. A obra realizada pelo Departamento Nacional de Obras contra as Secas (DNOCS) visava retirar esses municípios da estagnação econômica, usando a água tanto para consumo das cidades quanto para a irrigação. Porém, a barragem não democratizou o lugar. Segundo a Fundação Cultural Palmares, a barragem do rio Brumado coloca em xeque as possibilidades de reprodução sócio-econômica das coletividades negras de Rio de Contas. O enchimento do lago significou a perda de mais de 50% das terras férteis disponíveis, além de ter sido responsável pelo fim do arraial de Riacho das Pedras. Muitos de seus moradores se estabeleceram em terras mais acima, nos outros dois povoados ou simplesmente migraram para outras cidades da Bahia ou mesmo São Paulo. A implementação deste projeto estatal beneficiou apenas pequenos, médios e até grandes produtores das cidades circunvizinhas de Livramento de Brumado e Dom Basílio.
Vista do centro do povoado de Barra
Desde 1983, com o enchimento do lago, as comunidades aguardam ressarcimento do DNOCS pelas áreas submersas. Em uma manobra injusta, o Departamento estipulou que a indenização seria feita apenas pelas benfeitorias, ou seja, casas, dispensas, celeiros e coisas do gênero. Vários moradores não possuíam certificados de propriedade das terras, apesar de ninguém discutir sua posse secular.
Desconsideravam-se as terras. É mais ou menos como ser enxotado de casa e ser pago apenas pelos armários que você deixou.
Em um relatório de agosto de 1999 do próprio DNOCS, o órgão reconhece a situação de pobreza a que estão submetidos os moradores e que também não realizou o pagamento às famílias sem títulos de terra.
Porém, de acordo com Carmo Joaquim da Silva, presidente da associação de moradores, muitos moradores possuíam escrituras das terras que o DNOCS teria levado sob a promessa de melhorar a comunidade, construir uma agrovila, escolas públicas, trazer médicos. "Isso foi na década de 70 e, como não havia ninguém que nos abrisse a cabeça, nos demos o que eles pediram."
Segundo Carmo, depois a empresa pediu que todos abandonassem as terras. "O pessoal de Riacho das Pedras só saiu com o toque da água. Um devoto de Bom Jesus colocou o seu oratório na cabeça e, quase coberto de água, saiu chorando. Antes da titulação das nossas terras pelo governo éramos considerados invasores em nossa própria casa."
Carmo Joaquim segura título conferido a comunidade
Com o título de comunidade remanescente de quilombo, a propriedade das terras voltou a eles em definitivo. Porém aguarda-se ainda as compensações prometidas pelo DNOCS desde 1984. Projetos de urbanização dos vilarejos, melhoria de saneamento básico, treinamento de mão de obra especializada para o trabalho agrícola e programas de assistência social estão entre as promessas. Os projetos gerariam empregos para absorver os trabalhadores desempregados que foram tentar a vida nas cidades do Sul e Sudeste e agora estão voltando devido à crise econômica. O solo do sertão é perfeito para o plantio de frutas. E nas comunidades a coisa não é diferente. Abacaxi, mamão, manga, romã, laranja, jaca, banana. Além de milho, feijão, algodão e a boa e velha mandioca. Barra possui uma moenda comunitária para a produção de farinha. E um dos principais itens, o projeto de irrigação de terras cultiváveis está com o cronograma atrasado. De acordo com o próprio DNOCS, as obras deveriam ter começado em março desse ano para terminar até dezembro. Mas até agora nada.
A comunidade cobra a curto prazo, outras compensações que viriam na forma de instalação de um meio de comunicação com o mundo exterior (o telefone mais próximo fica a 15 quilômetros em Rio de Contas e celular não pega ali) e a criação de um espaço cultural com biblioteca, computador, televisão e vídeo para ser montado um arquivo da comunidade e guardadas as tradições que restaram. A abertura de uma escola até a 8ª série para que não necessário as crianças viajarem todo dia para Rio de Contas e a construção de uma escola agrícola para orientar os jovens a trabalharem na própria terra ao invés de migrarem às grandes capitais.
A briga com a empresa do governo está na Justiça. Porém o horizonte de perspectivas anda distante apesar de soluções tão simples. Simples e difíceis como os contrafortes da Chapada Diamantina. Turistas visitam as comunidades, muitos deles estrangeiros. Querem ver de perto uma cultura que vem se mantendo a duras penas ao longo dos séculos. Uma cultura que, se nada for feito, seremos os responsáveis por cobri-la com as águas do esquecimento. Uma cultura que tem como a palavra falada seu principal condutor.
Igreja histórica na cidade de Rio das Contas construída por escravos
O governo agora vem se mexendo, mas ainda em um rito lento para a espera secular dessas pessoas. Barra e Bananal são apenas uma das 724 comunidades remanescentes de quilombo que existem no Brasil. Cada uma com sua história, cada uma com seus problemas. Porém todas unidas na tentativa de sobreviver em uma sociedade que estipula valores de certo e errado como se ela mesmo fosse infalível. Que julga e condena à exclusão quem não segue seus preceitos. Que se diz pluralista e liberal quando na verdade todos sabemos que o valor dado ao negro ainda é inferior do que o dado ao branco. Isto não é uma crítica apenas ao governo e sim a todo nós. Que tipo de democracia estamos construindo em que cismamos em pisar nas minorias? Se é que podemos chamar de minoria 2 milhões de pessoas que pedem para serem reconhecidas e tratadas, não com privilégios - apesar da imensa dívida que o Brasil tem com os descendentes de escravos - mas sim com igualdade.
Quilombos no Brasil
Existem classificadas 724 comunidades remanescentes de quilombos no país, totalizando mais de 2 milhões de pessoas, distribuídas em 30,6 milhões de hectares de terra. Terras que não necessariamente lhes pertencem, apesar da ocupação secular. E como não possuem certificados de propriedade, ficam à margem da sociedade, não podendo, por exemplo, pedir empréstimo em banco para plantar.
Desde 1998, o governo vem conferindo a essas comunidades títulos que atestem a descendência de antigos quilombos e passando para as mãos dos atuais moradores as terras em definitivo. Até agora, 18 comunidades já receberam seus títulos, faltando apenas 706.
Atestado de culpa
Seguem-se abaixo trechos do relatório do DNOCS com relação à construção do açude público e inundação das terras quilombolas:
"O Projeto tornou Livramento hoje um município próspero, com taxa de crescimento superior aos demais municípios vizinhos, abastecendo o mercado interno e exportando excedentes para o mercado internacional.
As ações que fizeram a riqueza da população residente à jusante da obra, motivaram o agravamento da pobreza nos arraiais negros de Barra, Bananal e Riacho das Pedras. A construção da barragem impossibilitou a prática da agricultura nos solos mais férteis do vale, deslocando suas atividades para os tabuleiros nas cotas mais altas onde, além da carência de minerais essenciais ao cultivo, não existe água para a manutenção das culturas.
O enchimento do reservatório do açude público Luiz Vieira eliminou para aquelas comunidades as condições de trabalho que garantiam-lhe, mesmo que de forma rudimentar, sua sobrevivência." (...)
"Privados de suas terras, sem recursos financeiros e assistências, os quilombos negros de Barra, Bananal e Riacho das Pedras dificilmente serão mantidos. A exemplo do arraial de Canudos [também na Bahia], ao levar o desenvolvimento econômico à região, pode-se estar, também, destruindo um outro marco histórico."
Rio de Contas, Setembro de 2000

extraído do http://www.reporterbrasil.com.br/exibe.php?id=9  texto do Leonardo Sakamoto.

Um comentário:

  1. Eu conheçi este povoado há muitos anos, naõ sei se mudou muito a situação, mas de qualquer forma o texto serve para entender que o processo de resgate historico e cultural deve existir a partir da conscientização das comunidades. Outra questão que me chamou atenção no texto é baixa auto estima destas comunidades, principalmente se estas não conhecem a sua história e não buscam se afirmar enquanto cultura negra!

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